Pode ser muito enviesado o caminho seguido por um livro até chegar às nossas mãos. Este que ando a ler, por exemplo, chegou-me por causa de uma citação que dele fazia um outro que não sei já qual seria. É este um dos males de andar a ler vários livros ao mesmo tempo, à espera que algum nos agarre com toda a força que nele haja e (quase) nos obrigue a ler o resto de fio a pavio. Não seria o caso do tal livro agora esquecido, mas que, no entanto, me deixou às voltas com uma citação de um texto de Javier Marías sobre tradução. É um tema que me interessa o suficiente para me levar a procurar o livro e ir ver como defenderia ele a tese que despertou a minha curiosidade e que a citação apenas expunha brevemente.
A ideia que nesse texto se expõe parte do caráter quase sagrado dos grandes textos da literatura mundial, escritos numa língua que, por força da passagem do tempo, se vai tornando, para os leitores atuais, cada vez mais distante e incompreensível. E, porque intocáveis, esses textos permanecerão para sempre iguais, tal como foram escritos. Qualquer variação, por mínima que fosse, seria considerada inaceitável. Em contrapartida, esses mesmos textos poderão ser sucessivamente traduzidos, acompanhando a evolução da língua para a qual são traduzidos sem que com isso deixem de ser os mesmos. Numa comparação usada pelo autor: tal como uma partitura musical que pode ser interpretada infinitas vezes, com uma infinidade de diferentes matizes, velocidades, instrumentos, consoante os intérpretes, sem nunca deixar de ser ela própria. A partitura não muda, mas soa distinta de cada vez que é interpretada. Os textos originais, diz ele, são um pouco como as partituras musicais; a tradução um pouco como as diferentes execuções ou interpretações daquilo que de outro modo estaria condenado a ficar silenciado, e a empalidecer com o tempo e convertendo-se aos poucos em hieróglifos crípticos para os descendentes de quem escreveu o irrepetível e intocável e inalterável texto.
Javier Marías usa como exemplo o caso de Don Quijote de la Mancha – tinha de ser! – ou da Montanha Mágica, de Thomas Mann, das Afinidades Electivas, de Goethe, da Metamorfose, de Kafka. A lista é sobretudo de autores alemães por se tratar de um texto que foi lido pelo autor em Dortmund, Alemanha, na cerimónia de entrega do prémio internacional Nelly Sachs que lhe fora atribuído. Mas não será difícil completá-la com muitos outros livros de muitas outras línguas. Nenhum espanhol ou «hispanohablante», diz ele, aceitaria como início do Quixote outras palavras que não fossem: «En un lugar de La Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor…» Assim como nenhum português, poderíamos nós dizer, aceitaria como início da obra de Bernardim Ribeiro um outro que não fosse: «Menina e moça, me levaram de casa de meu pae para longes terras. Qual fosse então a causa d'aquela minha levada, — era eu pequena, — não na soube. Agora, não lhe ponho outra, senão que já então, parece, havia de ser o que depois foi.»
A verdade, porém, é que, como tudo o que é humano, também as línguas sofrem mudanças e envelhecem. E se esses textos clássicos (e, portanto, intocáveis e quase sagrados) ainda hoje são lidos são-no em grande parte por «imposição» dos currículos escolares que desse modo pretendem passar às novas gerações o precioso legado dos grandes autores. Só que a linguagem, o vocabulário, mesmo a sintaxe, foram-se tornando para os leitores atuais em grande parte numa verdadeira escrita hieroglífica, apagada pelo tempo e às vezes seguindo carreiros muito diferentes dos iniciais, assumindo novos conteúdos e conotações. Ainda há pouco estive a ver os livros recomendados (e «obrigatórios») para o ensino secundário e pude constatar como o brilho dos textos de Fernão Lopes, de Gil Vicente, do Padre António Vieira, para me ficar por estes exemplos, apenas conseguia chegar-nos lá da distância de anos-luz de quando foram escritos à custa de uma infinidade de contextualizações, comentários explicativos e de notas de pé de página.
Não assim com as traduções – é essa a tese exposta por Javier Marías. Diz ele: «os alemães do futuro gozarão do privilégio de continuar a ler o Quixote na sua língua alemã do futuro e não numa versão arcaica; tal como nós, os espanhóis, poderemos continuar a ler A Metamorfose ou A Montanha Mágica no nosso espanhol futuro e não num espanhol arcaico». Por isso se sucedem, se renovam, se atualizam regularmente as traduções dos grandes clássicos que, esses, se mantêm eternamente inalterados, intocáveis que são.
Aqui fica, em resumo, a tese sobre a atualidade da tradução, tal como é exposta pelo escritor espanhol Javier Marías, ele próprio tradutor, num artigo intitulado «Una pobre cerilla», incluído no livro «Literatura y fantasma», que reúne variadíssimos textos seus sobre variadíssimos assuntos. E, se nem todos me mereceram a mesma atenção e apreço, este que aqui deixo resumido foi para mim como o fósforo no escuro (a cerilla do título), que, mais do que iluminar, serve para mostrar a dimensão das trevas que nos rodeiam.
José Lima
(blogue do autor: https://zelima388727646.wordpress.com/)