A mão que não assina o papel. Traduzir é uma forma de ler devagar, escrever com esforçado decalque, recobrir o texto alheio a partir de um delírio de comunicação com os mortos, os autores, fantasmas que deram corpos à página: achar-nos próximos deles. O altruísmo dos tradutores é, de um prisma, arrogância; de outro, cobardia: a do cúmplice que se exime à congeminação moral do monstro.[1] Medimo-nos, a medo, com os grandes escritores no pódio da memória, vestimos-lhe a voz. Não nos é imperativo decorá-la, cedemos a retocá-la, torneamo-la ao ar do tempo, enquanto pretendemos despir-nos, ser transparentes, senão fluidos, recônditos, com a timidez por álibi, clandestinos onde habitamos, cabotinos no desconforto (passar por estrangeiros, viver júbilos e misérias por interposição, nós couraçados). Entre as línguas, somos metecos da antiga Atenas: ambulantes sem cidadania, mercenários atuando como solícitos estafetas.
Cobramos por caracteres, contando os espaços.
Margarida Vale de Gato
[1] Um dos argumentos mais fortes contra a equiparação entre tradutor e autor – além do óbvio, de que a nivelação obscurece a natureza distinta das tarefas – é o de Anthony Pym (2010) quando lembra que a autoria não concerne apenas a responsabilidade ou a propriedade intelectual, mas também a responsabilidade moral. Não se recriminam os tradutores pelo conteúdo do escrito (não obstante trágicas exceções, como os tradutores de Salman Rushdie, ameaçados e um deles mesmo assassinado) e salvaguarda-se-lhes o estatuto de um «eu alheio», sem terem de responder pelo que escrevem.