Traduzir significa muitas coisas, entre elas: difundir, transportar, disseminar, explicar, tornar (mais) acessível. Começarei pela proposição — a exageração, se quiserem — de que por tradução literária entendemos, podemos entender, a tradução da pequena percentagem de livros publicados realmente e dignos de serem lidos: por outras palavras, dignos de serem relidos. Irei defender que uma devida consideração da arte da tradução literária é essencialmente uma afirmação do valor da própria literatura. Para além da óbvia necessidade do contributo do tradutor para a criação de uma reserva de literatura como uma pequena e prestigiada empresa de importação-exportação, para além do papel indispensável que a tradução desempenha na construção da literatura como um desporto de competição, jogado tanto a nível nacional como internacional (com rivalidades, equipas, prémios
lucrativos) — para além dos incentivos mercantis, agonísticos e lúdicos para fazer tradução, esconde-se um incentivo mais antigo e francamente evangélico, mais difícil de confessar nestes tempos constrangidamente ímpios.
Naquilo a que chamo «incentivo evangélico», o propósito da tradução é alargar o número de leitores de um livro considerado importante. Assume-se que certos livros são distintamente melhores do que outros, que o mérito literário existe numa forma piramidal, e que é imperativo que as obras perto do topo sejam tornadas acessíveis ao maior número possível de leitores, o que significa serem amplamente traduzidas e retraduzidas tão amiúde quanto possível. É claro que uma tal visão da literatura assume ser concebível reunir um consenso aproximativo quanto às obras que são essenciais. O que não implica considerar que esse consenso — ou cânone — esteja fixado para todo o sempre e que não possa ser modificado.
No topo da pirâmide estão os livros considerados como escrituras sagradas: conhecimento exotérico indispensável ou essencial, que, por definição, requer ser traduzido. (Provavelmente as traduções linguisticamente mais influentes terão sido as da Bíblia: São Jerónimo, Lutero, Tyndale, a Versão Autorizada do Rei Jaime.) A tradução é assim, antes de mais nada, tornar mais bem conhecido o que merece ser mais bem conhecido — porque é edificante, mais profundo, exaltante; porque é um legado indispensável do passado; porque é uma contribuição para o conhecimento, sagrado ou outro. Num registo mais secular, a tradução era vista também como uma fonte de benefício para o tradutor: traduzir era um valioso exercício cognitivo — e ético.
Numa época em que se anuncia que os computadores — «máquinas de tradução» — serão em breve capazes de realizar a maior parte das tarefas de tradução, aquilo a que chamamos «tradução literária» perpetua o sentido tradicional daquilo que a tradução implica. A nova maneira de ver é que a tradução se reduz a encontrar equivalentes; ou, para variar a metáfora, que a tradução é um problema, para o qual é possível encontrar uma solução. Pelo contrário, o antigo entendimento é de que a tradução é fazer escolhas, escolhas conscientes, escolhas que não são simplesmente entre as dicotomias marcadas de bom e mau, correcto e incorrecto, mas entre uma dispersão de alternativas mais complexa, como «bom» contra «melhor» e «melhor» contra «o melhor», já sem falar em alternativas impuras como «antiquado» contra «na moda», «vulgar» contra «pretensioso» e «abreviado» contra «palavroso».
Para que tais escolhas fossem boas — ou melhores — supunha-se implicarem conhecimentos, simultaneamente vastos e profundos, da parte do tradutor. Traduzir, entendido aqui como uma actividade de escolha no seu sentido mais lato, era uma profissão de indivíduos que eram possuidores de uma certa cultura interior. Traduzir esmeradamente, conscienciosamente, engenhosamente, respeitosamente, era uma medida precisa da fidelidade do tradutor à empresa da própria literatura.
Escolhas que poderiam ser consideradas meramente linguísticas implicam sempre também padrões éticos, o que transformou a própria actividade de traduzir em veículo de valores como integridade, responsabilidade, fidelidade, ousadia, humildade. A noção ética da missão do tradutor teve origem na consciência de que a tradução é basicamente uma tarefa impossível, se o que se pretende é que o tradutor seja capaz de pegar no texto de um autor escrito noutra língua e fornecê-lo, intacto, sem perdas, noutra língua. Obviamente, isto não é o que mais interessa aos que esperam, impacientes, a substituição dos dilemas do tradutor pelo sistema de equivalências realizado por máquinas de traduzir melhores e mais engenhosas.
A tradução literária é um ramo da literatura — nada que se pareça com uma tarefa mecânica. Mas o que torna a tradução uma empresa tão complexa é o facto de ela responder a uma variedade de objectivos. Há exigências que derivam da natureza da literatura como uma forma de comunicação. Há a missão, em relação a uma obra olhada como essencial, de a tornar conhecida da audiência mais vasta possível. Há a dificuldade geral da passagem de uma língua para outra e a especial intransigência de certos textos, que aponta para algo inerente à obra, bastante longe das intenções ou da consciência do seu autor, que emerge assim que começa o ciclo de traduções — uma qualidade a que, à falta de melhor palavra, chamamos «tradutibilidade».
Susan Sontag
Nota do CTL: O que aqui incluímos é um excerto da “Conferência São Jerónimo sobre Tradução Literária”, de Susan Sontag, inicialmente publicada no Times Literary Supplement e depois adaptada para integrar um capítulo do seu livro Ao Mesmo Tempo, publicado em Portugal pela Editora Quetzal, em 2011, com tradução de José Lima. O texto foi escrito para a cerimónia de entrega dos prémios anuais de tradução atribuídos pelo Centro Britânico de Tradução Literária.