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Lança-se este manifesto em defesa dos tradutores literários em Portugal: um ofício de máxima responsabilidade exercido num contexto de surpreendente precariedade laboral, se atendermos ao peso cada vez maior da literatura traduzida nas receitas crescentes do mercado livreiro português.

 

Entende-se por tradutor literário aquele que recria na sua língua obras da literatura de outros países, agindo simultaneamente como representante dessa língua, do seu devir e legado, e ponte viva entre o autor estrangeiro e o leitor a quem a tradução se destina.

 

Os tradutores literários são os primeiros a reconhecer não só o privilégio de traduzir, como a grande responsabilidade que lhe é inerente. A respeito da importância da tradução literária, José Saramago, também ele tradutor e editor, diria mesmo que «os escritores fazem as literaturas nacionais e os tradutores fazem a literatura universal. Sem os tradutores, nós, os escritores, não seríamos nada, estaríamos condenados a viver fechados na nossa língua».

 

O dever dos tradutores literários não se esgota, portanto, numa tarefa contratual: os editores que os contratam, e de quem idealmente são cúmplices, não são os únicos a quem os tradutores devem o seu trabalho e a sua dedicação. Também o devem ao autor, cuja obra lhes foi confiada; devem-no ao leitor, a quem dão a conhecer uma literatura que, de outro modo, lhe estaria vedada. Devem-no a essa literatura universal que, em última instância, é património da humanidade. Devem-no ainda à língua portuguesa, que todos nós, que a falamos e escrevemos, temos o dever de preservar e perpetuar.

 

O dever dos tradutores literários é, logo, um dever cívico. Um dever para com o outro, a sociedade e o mundo.

 

As características intrínsecas do ofício já o destacariam como pilar fundamental do universo livreiro de qualquer país. Mas acrescem circunstâncias extrínsecas que vêm sublinhar a sua importância no atual mercado português. 

 

Dados divulgados a 24 de janeiro de 2024 pela APEL, resultantes do estudo conduzido pela GfK, apontam para um crescimento da venda de livros em Portugal na ordem dos 5% em 2023, face a 2022, confirmando uma tendência de crescimento de anos anteriores (15% em 2022 e 16% em 2021) que, embora menos pronunciada em 2023, só demonstra a resiliência do setor em tempos de inflação e retração económica. O estudo revela ainda que este crescimento decorre do aumento da venda de livros nas duas categorias com maior peso no mercado: a ficção e a ficção infantojuvenil, que cresceram ambas 9% face a 2022.

 

Além disso, nos últimos 20 anos, o mercado editorial português cresceu cerca de 30% (em 2004 registaram-se vendas de 140 milhões de euros nas edições gerais; em 2023, de 187 milhões de euros), a inflação subiu muitíssimo (incluindo os valores galopantes dos últimos anos), mas os honorários dos tradutores literários mantêm-se estagnados, de forma geral, entre os 7,5 € e os 8 € por página de 1800 caracteres. De resto, nos últimos dois anos, têm aumentado as propostas abaixo destes valores, com algumas a roçar o insulto (há quem proponha 4,5 €, 5 € ou 6 € por página de 1800 caracteres; ou 6,5 € por página de 2000 caracteres).

 

Sabemos que, dos livros de ficção vendidos em Portugal, mais de 60% são traduzidos.

 

Posto isto, e sendo os tradutores literários uma peça tão importante da nossa indústria livreira, é manifestamente incompreensível o estado de calamidade em que exercem a sua profissão. Os factos falam por si:

 

> Congelamento (ou redução) da remuneração nos últimos 20 anos.

> Desvalorização efetiva da remuneração dos tradutores, por efeito da inflação.

> Prazos de execução do trabalho muitas vezes irrealistas e prazos de pagamento habitualmente entre os 60, 90 e 120 dias.

> Indefinição contratual: contratos variam de editor para editor; alguns, em linha com o Código dos Direitos de Autor e Conexos, respeitam o estatuto autoral do tradutor, outros consideram-no um mero prestador de serviços.

> Condições contratuais muitas vezes danosas para o tradutor: ausência de cláusulas sobre prazos de vigência; não remuneração em caso de licenças e outras formas de publicação, incluindo cedência de direitos para suportes digitais conhecidos e desconhecidos; ausência de cláusulas sobre pagamentos de royalties nas reimpressões; inserção, em muitos casos, de cláusulas que passam os direitos patrimoniais das traduções integralmente para os editores; utilização da figura de contratos de obra por encomenda, e não de contratos de tradução.

> Indefinição fiscal: o estatuto indefinido do tradutor literário perante a Autoridade Tributária (AT) carece de uma posição coerente e coesa da parte dos seus empregadores. Neste momento, alguns editores exigem que os tradutores emitam recibos no enquadramento de «criação literária e artística»; outros preferem que se use código de atividades económica de tradutores, o qual engloba todas as dimensões da tradução, a de livros e a técnica. Acima de tudo, cabe à AT clarificar o estatuto do tradutor literário e aos editores aceitarem um estatuto único na emissão dos recibos. 

> Invisibilidade inexplicável dos nomes dos tradutores em quase todas as plataformas de venda do livro online.

> Invisibilidade dos nomes dos tradutores em grande parte das capas dos livros de literatura publicados em Portugal, em especial em muitas das chancelas dos grupos editoriais de maior dimensão.

> Pouca ou quase nenhuma presença de tradutores nos eventos organizados pelas editoras.

> Ameaça do uso intensivo e indiscriminado de IA na tradução, já materializado no caso de certas chancelas, e sancionado por intervenções recentes de centros decisórios no debate público.

 

Perguntamos: por que motivo ainda trabalham os tradutores literários em Portugal? Não trabalham pela remuneração, claramente insuficiente. Não trabalham pelo reconhecimento, que não têm. Não trabalham pelos direitos que lhes são devidos e que, tantas vezes, lhes são recusados. Pelo contrário, todos estes fatores conduzem à descredibilização da profissão e abrem caminho para o seu desaparecimento. Trata-se do culminar de um longo processo de sacrifício da cultura, da língua e da literatura à lógica bruta dos mercados, ao consumo acrítico e ao abandono progressivo de boas práticas de leitura.

 

A forma como um trabalho é pago reflete a importância que as empresas e a sociedade lhe dão. A pouca visibilidade dos tradutores nos canais de comunicação das editoras é indissociável da estagnação dos seus honorários e da fraca remuneração; faz parte do lugar e estatuto que nos é atribuído.

 

Por que motivo, então, ainda trabalham os tradutores literários em Portugal?

 

O presente manifesto pretende alertar os editores (e os cidadãos no geral) para o risco de termos de prescindir, num futuro próximo, de toda uma classe profissional que, até agora, tem feito grandes sacrifícios pessoais para manter acesa a última chama deste ofício: o facto de ser exercido, antes de mais, por paixão. 

 

Neste sentido, eis as reivindicações que consideramos essenciais para assegurar a continuidade desta profissão e cuja base é a melhoria das condições de trabalho dos que fazem tradução literária em Portugal. Defendemos:

 

·    A criação de condições contratuais mais justas e equitativas entre tradutores e editores.

·    A rejeição de cláusulas que passem os direitos patrimoniais das traduções integralmente para os editores.

·    A instituição do contrato de tradução, substituindo, em todos os casos, o contrato de obra por encomenda.

·    A instituição de um prazo máximo de vigência de contrato de 7 anos.

·    A integração nos contratos de remunerações em caso de licenças e outras formas de publicação (incluir cedência de direitos para suportes digitais conhecidos e desconhecidos).

·    A integração nos contratos de pagamento de royalties tal como na grande maioria dos países europeus.

·    A utilização de uma tarifa mínima justa, ponto de partida para a negociação entre os tradutores e os editores. Esta deve ser atualizada de acordo com a inflação, definindo-se termos para a sua atualização regular. Sugerimos uma tarifa mínima de entre 8,5 € e 9  € por página de 1800 caracteres com espaçamentos, a qual o mercado deverá respeitar enquanto boa prática. Sabendo que o valor médio atual para os honorários dos tradutores é de 7,6 € por página, identificado a partir do inquérito que realizámos em março e abril de 2024, a tarifa mínima que sugerimos representa um aumento muito abaixo da inflação nos últimos vinte anos.

·    A revisão, sempre que possível, dos prazos de pagamento para um máximo mais justo de 45 dias (em vez dos atuais 60, 90 e 120 dias), prevendo-se 15 dias corridos para aprovação da tradução e 30 dias corridos para pagamento.

·    O fim de práticas contraditórias na emissão de fatura e respetivo enquadramento fiscal. Os tradutores literários devem poder emitir as suas faturas enquadradas na atividade de «criação artística e literária», com os benefícios fiscais a nível do IRS e do IVA que isso implica.

·    A menção do nome dos tradutores nas capas e materiais de comunicação das editoras.

·    Mais espaço para os tradutores nos eventos organizados pelas editoras que visam divulgar os livros traduzidos.

·    A menção dos nomes dos tradutores nas plataformas de vendas online e nos anúncios das livrarias físicas nas redes sociais.

·    A menção obrigatória, na capa e na ficha técnica do livro, de que o texto foi traduzido por inteligência artificial sempre que a editora recorra a esta tecnologia.

·    A rejeição, por parte dos editores e dos tradutores, do uso de tecnologias de inteligência artificial na tradução de livros (e mesmo a sua utilização parcial, que deploramos, não deve ser pensada e decidida à revelia da intervenção de um tradutor).

 

Que a criação de justas condições de trabalho e o estabelecimento das boas práticas acima enunciadas possam dar aos tradutores literários em Portugal o estatuto que lhes é devido e um mínimo de estabilidade necessário para continuarem a desempenhar um papel fundamental na preservação da língua e cultura portuguesas.

 

Os signatários,

 

Alda Rodrigues

Àlex Tarradellas Gordo

Ana Cláudia Santos

Ana Isabel Soares

Ana Maria Pereirinha

Ana Matoso

Artur Guerra

Artur Lopes Cardoso

Catarina Ferreira Almeida

Cristina Rodriguez

Daniel Jonas

Dina Antunes

Elisabete Sousa

Eugénia Antunes

Frederico Pedreira

Guilherme Pires

Inês Fraga

Isabel Castro Silva

José Lima

José Mário Silva

J. Teixeira de Aguilar

Madalena Caramona

Manuel Alberto Vieira

Margarida Vale Gato

Maria Carmo Figueira

Marta Mendonça

Marta Nascimento Morais

Miguel Cardoso

Miguel Romeira

Mónia Filipe

Paulo Faria

Paulo Rêgo

Rita Canas Mendes

Rita Custódio

Rita Furtado

Sara Veiga

Teresa Mendonça

Teresa Swiatkiewicz

Valério Romão

Vasco Gato

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